Eternidade de criação, princípio gerador, movimento incessante de etéreas pulsações, de vibrações rítmicas rodopiantes; oceano de energia virtual, corpo negro sutil a gerar de si, em si, de suas tensões intimas auto-fecundantes, ex-tensões, ondas quânticas, de “aparência mental”, colapsadas em corpúsculos, corpos de matéria e vida - que é consciência, memória, liberdade.
Meu fascínio extático diante da criação, da unidade cosmos-vida-consciência, já entrevista em seus padrões geométricos isomórficos de crescimento, estende-se ao feminino criador, ao universo de seu corpo, microcosmo holográfico, sinuoso como ondas e colinas, às espirais lácteas de seus seios, ao seu ventre venusiano, vaso alquímico em que se continua o trabalho das estrelas, a forjar constelações humanas.
Eterno feminino; por seu corpo e sua alma, imanentes a ela, moldados para recebê-la, transpassa a força criadora em seu esforço de evolução; o princípio masculino é coagente, mas é segundo quanto ao feminino, deste derivado, ao mesmo tempo seu “filho e amante”; sendo sua relação com a força criadora indireta, mediada pelo feminino.
A inteligência (poder de iniciativa e invenção de instrumentos ou órgãos artificiais, como são as palavras, instrumentos do pensamento), potencial em toda a vida animal, ao atualizar-se em humanidade, no caminho reconfigurou nosso corpo, tornou-o mais frágil comparado aos instrumentos biológicos dos ancestrais pré-humanos.
Segue-se que a fragilidade é um índice de inteligência, sua condição estrutural; e que, portanto, esta tende a ser mais plena nas “frágeis” e “irracionais” mulheres, de corpo mais sofisticado e cérebro mais evoluído: seu corpo caloso, feixe de fibras nervosas que une os dois hemisférios, é mais espesso, tem mais “fios”, o que lhes faculta aptidão para várias tarefas em simultâneo, a indicar percepção mais apurada e maior capacidade de processar múltiplas informações, questão central para o desenvolvimento da inteligência artificial; e, ainda mais, diz-se, mulheres pensam também com o coração, impressão corroborada por fato biológico, pois nele há um “pequeno cérebro”, o segundo maior aglomerado neuronal do corpo.
Coração e coragem provem da mesma raiz. Criadoras e mantenedoras de vida, domadoras de lobos e cavalos, inventoras da moagem e cozimento dos alimentos – crucial para a evolução humana, pois o excedente de energia gerado por melhor digestão pode ser então direcionado para o desenvolvimento cerebral -, da tecelagem, da agricultura, da química, da medicina..., e também da arte, pois quando das pinturas rupestres as funções mágico-religiosas eram exercidas por xamãs femininas em cavernas-templos, símbolos do útero da Grande Deusa, a Mãe - Terra; e as próprias linhas, delicadas, sinuosas e pulsantes de movimento, destas obras são prova inconteste disto, porque muito mais afeitas à sensibilidade feminina para com a natureza.
As mitologias neolíticas e da idade do bronze da Deusa Mãe do Universo floresceram até 2500 Antes da Era Comum, quando uma cisão ontológica absoluta entre o divino e a natureza e a humanidade fez-se uma força social e psicológica que impulsionou a tragicomédia do patriarcado e seus deuses arremessadores de raios, do trovão e da guerra; deuses tribais misóginos capazes de “engravidar”, de gerar vida de modos os mais grotescos, insanos, antinaturais. Santo parto.
Desde então, até hoje, a natureza e o corpo feminino, “desalmados”, tornaram-se um território de batalhas ferozes e cruéis por seu controle e posse, em todos os planos, físico, psíquico, moral, econômico, estético, político e jurídico. Os homens, escudados em seus egos reluzentes, anjos matricidas decaídos, em rebelião contra o poder feminino, contra o próprio divino.
Que força muito além de titânica é a feminina, capaz de resistir a tanta violência por tanto tempo e suplantá-la; feminino - Arvore da Vida que não fez senão vergar-se sem jamais quebrar-se, e que, no Renascimento, e novamente nas ultimas décadas, reergueu-se frondoso a religar os mundos, ínfero, terreno e celeste, o inconsciente e a consciência racional, o feminino e o masculino, em cada um de nós, homens e mulheres de boa vontade.
Deusas e Deuses são símbolos de energias espirituais, imagens modelares ou arquétipos de feminino e masculino em suas nuances, uma entre outras tensões polares que, ao modo das extremidades tensionadas de um arco, estruturam a psíquê humana e geram sua energia potencial. Em sociedades pagãs, de modo geral, os dois princípios eram cultivados. E desde a pré-história, o divino, símbolo psíquico de totalidade ou integridade, é imaginado como andrógino. Mesmo o demiurgo patriarcal do velho testamento assim o é, e Sofia é dita sua essência feminina, co-eterna com ele e artífice do cosmos e da vida: mater, mãe-terra, matéria. Somos filhos do sol e da lua, filhos da sabedoria, que se realiza na conciliação e superação dos opostos antagônicos e complementares que estruturam nossa consciência total.
Serei homem pleno, viril, se feminino também for. Diz-nos Jung, o inconsciente masculino é feminino e vice-versa; o inconsciente, como sabemos, "deseja" encarnar-se, ser integrado à consciência; se não, projeta-se em algo ou alguém como num espelho, no qual, tal como vampiros, nossa própria imagem não se reflete. Em todos nós, de modo irredutível, os pólos feminino e masculino coexistem em mesclas distintas e únicas, por isso há tantas sexualidades quantos seres humanos. A imagem no espelho do homofóbico e do machista é o feminino que negam em si mesmos. O machismo e a homofobia principiam por ser negação de parte do si mesmo para consumar-se em auto-afirmação doentia da outra. É o feminino constitutivo da integralidade do ser homem que este teme reconhecer, o feminino em seu corpo e sua alma, sua androginia estrutural.
Talvez, a ambivalência dos desejos e a conseqüente crise de identidade que esta condição enseja, perfeitamente natural, seja um fator que alimente a rejeição e o desprezo ao feminino.
Da costela-útero de Adão à freudiana inveja do pênis (do outro, na verdade), o patriarcado é uma confissão de impotência e dissociação psíquica, que mantém os homens, auto-referidos racionais em oposição à irracionalidade feminina, dominados e deformados pelo irracional instinto pré-humano do macho alfa. Talvez, uma espécie de nostalgia da animalidade, a inflamar uma inteligência de natureza utilitária e egoísta, seja o fundamento de personalidades possessivas (territoriais) e autoritárias (submissas aos “superiores” e tirânicas com os “inferiores”), do culto à modelagem corporal, à força muscular e ao combate físico; o que contradita a evolução da vida, pois o desabrochar da inteligência, que define a condição humana, suplantou o instinto, a agressividade e a força bruta como mediadores de nossas interações sociais e com a natureza.
Mas, o covarde esforço, em oposição à própria evolução, empreendido para domesticar a “selvagem” mulher, por opressão de seu amor espontâneo e de sua liberdade espiritual e corporal que irrompem da consciência profunda da vida, puro instinto, intuição e sentimento, acaba por trair a si mesmo, pois, paradoxalmente, a liberdade e o amor idealizados na mitologia dos dominos têm sempre por símbolos dominantes imagens femininas. Não há um deus da liberdade. A liberdade é fêmea.
A hiper-racionalidade do nosso tempo, e sua sombra ou imagem invertida, o fundamentalismo moral e religioso que a compensa, são as ultimas linhas psicóticas de defesa da dominação masculina. Se o patriarcado se sustenta da sobrevalorização da razão, não seriam então os intelectuais seus operadores mais dissimulados? Sua miséria emocional, que se prolonga da negação do conhecimento inconsciente e feminino, encoberta por egóicas racionalizações prolixas, é prova inconteste disso. Quanto a padres e pastores, sua simples existência é uma ofensa ao feminino, associado por eles ao demoníaco, ao pecado e à culpa, o pecado e a culpa de desafiar interditos patriarcais, enquanto degeneram em perversões sexuais e financeiras.
A “Queda” não foi da humanidade, e sim dos homens e seus deuses impostores; pois que entre o deus patriarcal e Lúcifer, “o portador da luz”, escolho este, que nas sociedades matrilineares, era o Touro Lunar, símbolo do princípio masculino. O espírito feminino de indômita bravura persiste em vôos intuitivos insuflados por emoções criadoras. Elevemos-nos com ele, alegres e amorosos, à vertigem de uma realidade sempre em vias de se fazer, sempre se fazendo, nunca já feita..., eternidade viva.
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