quarta-feira, 8 de outubro de 2014

[EU VI] O MOSAICO nas palavras de Cláudio Ritter

Hoje trazemos até você as reflexões do Cláudio, um de nossos parceiros nessa edição do MOSAICO. Convidamos ele pra atuar como crítico dos espetáculos, e ele aceitou!

Então, confira as impressões de Cláudio Ritter sobre os espetáculos "Travessias" e "A Intrusa".
Vale a pena ler!


TRAVESSIAS
do grupo Teatro Por Que Não?
apresentado no dia 03 de outubro no Mosaico 2014




Pertencemos tanto à sociedade quanto a nós mesmos. Cada um somos dois. Eu social, consciência superficial, egoica e utilitária, destinada a agir sobre a matéria, personalidade exteriorizada, mas também, ainda que de modo disperso porque a inteligência nos inclina antes ao egoísmo, solidária, co-movida e compassiva, entrelaçada e assemelhada às demais personalidades por automatismos de hábitos e obrigações imitativos do instinto social presente na natureza, fundamentais que são para a conservação e a estabilidade das sociedades. E Eu individual, que é personalidade irredutível, incomensurável com todas as outras, pura diferença, fonte de sapiência, da intuição – “gozo da diferença” (Deleuze) -, a única forma de conhecimento, pois que instinto e inteligência são modos de ação sobre a matéria; dimensão da consciência que pode alçar-nos as profundezas cósmicas e, assim, sincronizar-nos ao próprio elã criador do universo e a sua quintessência, o amor em si, o amor sem objeto, “gozo no gozo, amor do que é só amor” (Bergson), experimentado principalmente por grandes criadoras e criadores morais, artistas, filósofos e cientistas, cujas emoções originais impulsionaram a evolução espiritual e material da humanidade.

Pois bem, isto posto, pode-se dizer que a peça Travessias trata da angustia moral, sentimento desdobrado das relações desarmônicas entre os dois Eus, fonte de todo mal, que se prolonga e amplifica no plano das relações entre indivíduo e sociedade. Sabemos bem o quanto nos perturba a alma e a psiquê tais desequilíbrios; e a que extremos da dissociação psíquica (que nos faz pendular, bipolares, entre depressão e euforia, entorpecimento quase vegetativo e hiperativismo), e da psicopatia anti-social (traço típico de porção expressiva da elite econômica brasileira, de criminosos contumazes e de homicidas seriais), eles podem nos arrastar, visto o quanto são desiguais, excludentes, violentas e medicalizadas em termos psiquiátricos, as sociedades contemporâneas. Pobreza material, anverso de riqueza concentrada de forma vil, e miséria espiritual são os dois lados da moeda, a hóstia do individualismo capitalista ofertada no templo do consumo redentor. Não é por nada, têm muita ciência disso os publicitários-sacerdotes, que aos objetos de desejo devem estar associados valores arquetípicos, de modo a manter as vontades, e a vontade é a própria alma, rodopiando sobre si mesmas em círculos fechados, ao invés de seguirem em frente por sendas espiraladas em direção ao centro da alma, concêntrico ao centro do próprio Universo. O que nos remete ao segundo tema da peça, a crise do sagrado, do místico enquanto experiência do mistério essencial, inapreensível à inteligência, pois que a parte não pode compreender o todo; crise manifesta na recrudescência conservadora e fundamentalista que caracteriza o estado das religiões tradicionais, e no niilismo cínico, que são reações simétricas ao reducionismo da consciência, considerada como um epifenômeno aleatório da matéria na fé do cientificismo materialista, à racionalidade instrumental, qualidade atribuída ao masculino, com a conseqüente desvalorização da consciência irracional, ”selvagem” (o que é oposto ao domesticado), defeito associado ao feminino, mesmo que seja óbvio que a “inteligência só pode elevar-se sobre as asas do instinto”. Por isto, não por nada, sabem bem os pastores-publicitários, é que o arranjo tecnológico mais avançado do planeta, o Vale do Silício, situa-se bem no centro do cinturão bíblico norte-americano, nascedouro do movimento político de extrema direita, Tea Party, financiado por ultra-capitalistas e ecoado no Brasil por Marina e Aécio, em versões nem tão dissimuladas.
Restaria ainda por comentar sobre as relações entre emoção (que seria um “estremecer afetivo da alma que incita a inteligência a empreender e a vontade a perseverar”), inteligência e religião, nascidas juntas na evolução da vida quando do surgimento da humanidade. A religião, como saída das mãos da natureza, seria uma reação defensiva desta, gerada pelo próprio instinto eclipsado, ao poder dissolvente da inteligência sobre a coesão social e o apego à vida. Por fim, lembremo-nos sempre de que nossa existência é muito mais cósmica do que terrena; e de que a verdadeira vida, a mais elevada, só a encontraremos no mais profundo de nós mesmos, na escuridão mais negra de que se veste a Deusa Noite, mãe de todos os rebentos de luz, e primeira das divindades criadas pela humanidade.


A INTRUSA
da Cia. Retalhos de Teatro
apresentado no dia 04 de outubro no Mosaico 2014




Vida e morte. Sexo e morte. Afrodite e Tânatos. Útero e túmulo – útero da Mãe Terra. O que nasce já está morto. A morte não é uma intrusa, é a melhor conselheira, pois, diz um provérbio, para que aprendamos a viver é preciso antes que aprendamos a morrer. Enfrentar o medo da morte, matriz de todos os medos, é condição para uma vida plena e íntegra, sempre a recriar-se, sempre a renascer. Nossa sociedade pode ser dita afrodisíaca porque, para fugir da morte, obseda-se no sensorial até as raias do pornográfico, incluído o culto ao corpo e à saúde que, magicamente, visa procrastinar a velhice, a última fronteira da vida. Assim, a morte, que no passado não tão distante pertencia a esfera pública e com a qual as crianças conviviam com maior naturalidade (as pessoas morriam em suas casas onde se realizavam as cerimônias fúnebres), hoje é privatizada, quase escondida em U.T.Is e salas funerárias comerciais; assim o sexo, antes pertencente a ordem do privado, hoje é exposto nas redes sociais, e as próprias crianças são induzidas a sensualização, ou seja, ao medo da morte.

Por fim, a morbidez dos personagens, por sua degeneração moral e física transfigurados em seres quase teriomórficos, devem nos lembrar de um fato simples: os impulsos criativos do inconsciente devem ser integrados à consciência; se não o forem, transmutam-se em seu oposto, e voltam para nos assombrar na forma de demônios e monstros interiores que acabam por nos possuir; e como o que nos possuí é inconsciente, será necessariamente projetado no exterior, nas coisas e nos outros, a quem atribuiremos a culpa por nossos males sem reconhecê-los em nós, o que fará da nossa vida uma sucursal do inferno. E então, não haverá exorcismo que resolva. Por isso, se dizemos sinceramente que amamos a vida, devemos ir até fim e completar a sentença: também amamos nossa morte, amém.

E você, quer nos contar suas impressões sobre os espetáculos que ainda vão rolar no Mosaico deste ano? Manda seu texto pra gente!

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